“Entrei na cela branca, fria e seca. Doze beliches de alumínio preenchiam o quarto em forma de L. Uma TV do tamanho de um quadro branco estava pregada na parede, e Thanksgiving (um filme de terror de 2023) passava ao fundo. Tinha acabado de começar, e os gritos ecoavam pelo ambiente. Um grupo de homens fazia um círculo em torno de uma das camas.Fui forçado a deixar minhas coisas para trás sem explicação, e meus cadarços e cinto foram confiscados. Assim que os guardas fecharam a porta atrás de mim, os homens, que à primeira vista pareciam assustadores, abriram o círculo e me perguntaram se eu queria me juntar a eles. Com cautela, me aproximei e, assim que o fiz, eles me receberam com gentileza, perguntaram como eu estava e começaram a compartilhar histórias, tentando me tranquilizar. No fim das contas, éramos todos irmãos latino-americanos.”
Nota: A nacionalidade e os detalhes foram mantidos em anonimato por motivos de segurança.
Fui abordado há muitas luas para escrever este blog sobre minhas experiências como sul-americano no exterior. No entanto, acho difícil me conectar com o conceito reducionista de “latino-americano”. Pelo que vivi até agora, esse conceito só ganha importância em dois contextos. Primeiro, quando ocidentais tentam compreender o que consideram ser o “outro”, nos reduzindo a categorias simples para facilitar sua digestão cultural. O segundo – mais comum entre as diásporas sul-americanas – é a ressignificação dessa mesma abordagem inicial, mas de uma forma que nos fortalece, rejeitando a separação estrutural castradora imposta pela colonialidade no Norte Global. Ninguém gosta de estar sozinho. É mais fácil nos chamarmos pelo nome coletivo e imperialista que nos foi imposto — Latino, Latina, Latinx — do que permanecermos dispersos.
Depois de ter que pegar um voo de emergência de volta ao meu país de origem – o Peru – meu foco para esta discussão mudou. Fui jogado em uma sala fria, marcada por hematomas e brutalidade, trancado pela migração mexicana. Meu tempo de espera antes do voo de conexão era de 12 horas. Enquanto meus companheiros de cela relembravam suas próprias experiências, ficou claro que, mesmo com todos os documentos exigidos, acabamos presos, isolados e sozinhos. Foi nessa experiência de retorno ao lar, vindo da diáspora, que compreendi um lado diferente do conceito ressignificado de latino — aquele que estamos tão acostumados a discutir dentro de nossas comunidades.
A masmorra da deportação — sem janelas, sem relógios, com apenas camas de metal e colchonetes de academia como colchões — me fez refletir profundamente sobre a rigidez e o abuso que ocorrem dentro e entre a chamada comunidade internacional “latina”. Ao compartilhar histórias e entrevistar meus companheiros de cela, identificamos um padrão que se repete em diferentes territórios: um tratamento cada vez mais desumanizante à medida que se aproxima da América do Norte. O México, no nosso caso, funcionava como uma fronteira dentro da fronteira — contaminado pelo senso estereotipado de superioridade dos EUA em relação aos países vizinhos do sul das Américas.
Quando cheguei ao Aeroporto Benito Juárez e tentei passar pela imigração, o agente migratório — um homem de meia-idade responsável por processar meus documentos — não sabia como usar a tela sensível ao toque do meu celular para verificar meu e-visa do Reino Unido. Segundo o próprio site da imigração, isso deveria ser suficiente para comprovar meu direito de transitar pelo país. Percebi sua frustração e, quase jogando o celular de volta para mim, ele disse: “Isso não vai funcionar.” Encolhi os ombros. O que eu deveria dizer? Era isso que eu tinha, e deveria ter sido o bastante.
“Tive uma experiência parecida, cara”, comentou Paraguai. “Eu tinha meu visto e todos os documentos prontos, mas o agente de imigração me olhou de cima a baixo e pediu meus extratos bancários. Eu tinha, mas por que diabos eles queriam isso?” — disse, cerrando os punhos de frustração. “Bom, acontece que eu não era líquido o suficiente para visitar o México. Mesmo ficando na casa do meu primo e sem intenção de gastar mais de 3 mil dólares. E sim, eles exigiram comprovante de que eu tinha mais de 3 mil dólares de renda nos últimos três meses! Três mil!” Ele segurou o rosto com as mãos e encostou-se na parede fria. “Faz dois anos. Desde a COVID, não consigo ver minha família. Juntamos todas as nossas economias para pagar minha passagem e meu visto… pra nada!” Meu coração se partiu.
Saint Marteen entendia espanhol, mas não era muito bom em falá-lo. Era ferreiro e estava fugindo da falta de empregos em seu país. Falava principalmente francês e um inglês quebrado. Eu me tornei seu tradutor.Eu mal lembrava como falar francês, mas, naquele momento, entre gestos, palavras improvisadas e erros gramaticais horríveis, nos entendemos.Ele também tinha um visto. Um visto de trabalho para o México, para ser exato. Veio para trabalhar como ferreiro, mas o agente de imigração, com um olhar rápido, o trancou.“Não estamos procurando pessoas com o seu… perfil”, disse, antes de jogá-lo na detenção.Teorizamos — e quase tínhamos certeza — de que isso aconteceu por causa da cor de sua pele.“Preto demais para o país, eu acho”, comentou Nicarágua. Todos rimos, inclusive Saint Marteen.
“Não importa o motivo, todos nós estamos sendo deportados.” A voz de Nicarágua soou firme. O sangue nas minhas pernas congelou, e senti meu nariz e bochechas ficarem vermelhos. Eu nem sabia que estava sendo deportado. Fui empurrado de um lado para o outro por uma hora antes de ser jogado na sala de deportação. Me obrigaram a assinar documentos sem explicações reais, além de um seco “Seu país tem relações muito ruins com o nosso.” Depois disso, sem dizer mais uma palavra, me levaram para uma sala bege com armários velhos e descascados. O agente me disse que eu seria inspecionado e começou a me apalpar de forma extensa por todo o corpo. “Eu sei que sou gostoso, mas não esperava que o cara fosse tão insano naquela… você sabe, naquela área”, comentei para o grupo, apontando para minhas costas e virilha. “Bom, poderia ser pior, eles podiam ter te sondado”, brincou Nicarágua. Eu ri. Concordei com ele. Por um segundo, achei que o militar fazendo a revista ia me mandar me curvar e tossir. Fiquei profundamente assustado. Temi o pior: a prisão. Bom… algo bem apropriado para um antropólogo, eu acho.
Antes de me deixarem entrar na sala – o que na hora era um completo mistério, já que os agentes não falavam diretamente comigo – apareceram dois oficiais, uma festa! Eles conversavam entre si sobre “quantos estão nas salas” e “Onde vamos colocar esse aqui?” Eu não conseguia parar de pensar em quantas outras pessoas passam por essa experiência por coisas tão pequenas, como um velho não saber usar um celular e ficar frustrado. Não importa o motivo, ninguém deveria passar por esse nível de trauma e ansiedade.
“Então, por que te trancaram?” Paraguai me perguntou. “País ruim para fazer escala e um velho agente de imigração sem noção de tecnologia. Meu pai tem uma cirurgia urgente e eu peguei o voo mais rápido que eu consegui pagar,” eu respondi. “Agora eu entendo por que foi tão barato.” Eles riram e não acreditaram em mim. Tive que insistir que aquilo era a verdade. “Louco, antes de você teve um cara da China que foi trancado por traficar 2CB entre as bolas. 30 gramas. Passou por três países para ser descoberto aqui. Sorte de merda, eu acho,” disse Nicarágua. “Você vem da Nicarágua também, eu imagino?” Respondi que não. Eu era do Peru e estava fazendo mestrado em Oxford. Eles não acreditaram em mim novamente e começaram a zombar, dizendo: “Como é que um espertalhão como você acaba aqui?” Eu respondi o mesmo de antes: “Momento errado, lugar errado.” Compartilhei minha história com mais detalhes, mas não vou fazer isso aqui por questões de espaço.
Depois que fiz isso, eles se abriram ainda mais para mim. “Eu roubei um carro com muitas ‘coisas’ dentro,” um deles disse. Achei que ele estivesse brincando, mas depois de insistir muito, devo admitir que acreditei nele. Não havia, no final das contas, razão para mentir. Assim, sugeri que fizesse entrevistas com eles, sabe, como um “bom” antropólogo faria. Mas as entrevistas foram longas, e provavelmente a melhor ideia seria deixá-las para outra discussão. Conversamos sobre como os oficiais mexicanos criminalizam a maioria dos grupos que consideram latino-americanos, como se eles não fossem classificados e diminuídos da mesma maneira que o resto de nós é pelo Ocidente. É como o Paraguai mencionou: “Eles acham que são um tipo superior de latino porque estão mais próximos dos EUA, eles esfregam o rabo dos EUA.”Depois dessa experiência, não posso negar essa afirmação nem a violência estrutural perpetrada por esse governo. A experiência vivida tornou tudo isso real demais para sequer questionar.
Voltando ao tópico principal, dentro dessa experiência e dessas discussões com meus companheiros de cela, o conceito de “latino-americano” ganhou uma nova dimensão. A masmorra da deportação revelou como a própria solidariedade que buscamos nas comunidades da diáspora pode ser fragmentada por hierarquias coloniais internalizadas. Minha experiência é bem específica devido ao meu jeito particular de ser (ontologia) e de ver o mundo (lente epistemológica). Através dessa breve etnografia, eu quis demonstrar, por meio da minha experiência vivida, como o conceito de identidade latino-americana muda e se torna mais complexo quando o consideramos dentro das dinâmicas de poder mais amplas dentro, além e no espaço mental liminar da região. De uma ferramenta de categorização colonial a um meio de solidariedade e, finalmente, para incorporar a teia complexa de hierarquias internas que refletem as próprias estruturas que buscamos resistir, uma identidade latino-americana aparece como uma categoria agridoce que ainda não compreendi completamente e na qual não sei exatamente onde me alocar. Só sei que, provavelmente, farei tudo o que estiver ao meu alcance para não colocar mais um pé no México tão cedo.
E é isso que a SOMOS quer oferecer: conexões. Conexões que vão além das fronteiras, conectando-nos através de nossas raízes e experiências compartilhadas, afinal, raramente nos perdemos nas traduções. Valorizamos a diversidade dos microcosmos da América Latina e acreditamos que, ao mantermos vivas as histórias que nos formaram, fortalecemos nossa identidade coletiva. Assine nossa newsletter e receba semanalmente dicas, curiosidades, promoções exclusivas e muito mais!