Há textos que não se escrevem: se escutam nas paredes de uma casa antiga, na voz entrecortada de uma infância silenciada, ou no eco de uma risada que tenta sobreviver. Esta cena — ou melhor, este fragmento de vida — nos chega de um lugar entre a dor e a ternura, entre a memória e a necessidade de inventar uma identidade a partir do jogo, da risada e das bolhas de sabão.
Duas personagens, Maive e Flora, nos convidam a entrar em seu mundo: um mundo atravessado pela ditadura, pelo abandono, pela reconstrução. Palhaças, filhas, buscadoras de sentido. Palhaças que se maquiam com tristeza, mas oferecem alegria. Elas nos contam sua história, mas talvez também a de muitos outros.
Maive: Neste instante me encontro, em cada bolha que sai por esse círculo minúsculo e redondinho — que parece sempre o mesmo —, vejo o passado tão volátil quanto o tempo que leva pra essa bolha sumir. Bolha… vivo numa bolha?
Flora: Só vejo o passado. Pensamentos repetitivos de uma realidade que às vezes me indigna, outras me entristece, mas que na maioria das vezes me arranca uma risada sarcástica.
Maive: Só vejo o passado, repito isso como uma menina gaga que perdeu a fala porque algo a traumatizou. E sim, algo disso tenho, o “r” me custa… digo, pronunciar… ra-ra-tom.
Flora: Só vejo o passado, aquele maldito dia em que entrei no meu quarto, vi mamãe sentada sobre meu moletom azul que tinha deixado na ponta da cama antes de ir pra escola. Seu rosto cinza já anunciava que algo estava errado.
Maive: Só vejo o passado, e nesse mesmo instante entra papai, com expressão compungida e cara de boneco de pano.
Flora: Só vejo o passado, e mamãe começa dizendo: “filho…” — gagueja —, naquele instante penso que ela está zombando de mim, então imito ela e rio. Ela me olha fixamente. Percebo que não é brincadeira. Tem algo errado.
Maive: Só vejo o passado, e aqueles olhos me encaram como se eu fosse culpada por algo que até hoje nem consigo entender.
Flora: Só vejo o passado, e papai levanta a voz, fala alto pra calar os pensamentos que devoram sua consciência e o enchem de culpa.
Maive: Só vejo o passado, e o grito desmedido de abandono… abandono ou sequestro? E então ouço: “temos que te contar uma coisa”, e os dois pronunciam juntos a palavra maldita — des-a-pa-pa-pa-recidos.
Flora: Só vejo o passado… Desaparecidos? De onde? Do quê? Não entendo. “Seus pais”… meus o quê? E aí o idioma some da minha boca, parei de falar normalmente por um bom tempo.
Maive: Só vejo o passado, então soube que meus pais biológicos estão mortos, que foram assassinados por militares, por causas que até hoje não sabem me explicar.
Flora: Só vejo o passado, e também não sei quem sou. Acho que por isso fui embora de casa. Me tornei palhaça pra poder rir de mim, do meu não saber quem sou. Perdão se repito… sou trotamundos — perdão, sou tartamuda.
Maive: Só vejo o passado e a vida sintetizada num rascunho que vaga por ruas desertas, brinca com balões, nariz vermelho, amor de criança, calor de praça.
Flora: Só vejo o passado e aí sim quero — quero a praça, esse lugar tranquilo onde o sol aquece minhas bochechas e cria um palco pra que, por um momento, alguém me veja. Sim, quero que me vejam.
Maive: Só vejo o passado e aquela menina invisível que ninguém viu… ou viu? Não sei. Mas me sinto um fantasma. Não sei quem sou. Desaparecidos? Filha de quem?
Flora: Só vejo o passado, e essas bolhas… olha essa aqui! Mas olhem pra mim, todos atentos. Cada bolha desliza pelo ar com sua mágica.
Maive: Só vejo o passado. Obrigada por me olharem, por verem minhas bolhas, minha arte. Pelo menos sei que, pra vocês, eu existo, sou alguém. Esse sorriso de criança me acompanha todos os dias, e no mais profundo do meu coração, sei que o caminho se encontra caminhando. E talvez ali… eu me encontre. Apagão breve.
Ato 2
Flora: Vem, Maive, sai daí. É por aqui.
Maive: (com uma lanterna, única luz na cena) Espera por mim.
Flora, onde você estava?
Flora: Estava checando se tudo estava certo. Está pronta?
Maive: Sim.
Flora: Bom. Me ilumina aqui. Quando eu disser, você abre essa porta sem fazer barulho e pega a caixa.
Maive: Não entendo o que estamos fazendo, Flora. Pra quê? O que estamos procurando?
Flora: Rastros.
Maive: Dos nossos pais?
Flora: Não, dos cachorros do vizinho! De quem mais seria, por favor… que pergunta!
Maive: E o que ganhamos com isso?
Flora: Saber quem somos, Maive. E dar um sepultamento digno aos nossos pais.
Maive: O quê? Você ficou maluca de vez.
Flora: Cala a boca e confia em mim. No curso de biodescodificação consciente que estou fazendo, ensinaram os passos pra realizar o ritual e enterrar nossos mortos.
Maive: Ah, não acredito nisso!
Então a gente precisa encontrar objetos ou sei lá o quê deles? Vamos pra praça, é hora do trabalho.
Flora: Shhh, silêncio, Maive! Abre agora, eu seguro aqui.
Maive: Está trancada. Tem cadeado e chave.
Flora: Não importa. Pega a caixa e vamos.
Maive: E quem te disse que tem algo dos nossos pais aí?
Flora: Muitas perguntas. Vai, vamos.
Maive: Espera, falta meu nariz. Juro que estava aqui.
Flora: Ai, Maive! Tem certeza?
Maive: Sim. Me ajuda a procurar, não saio daqui sem ele.
Flora: O que você tá fazendo, menina! Você pisou em mim. Ai, caramba…
Maive: Desculpa, é que estou nervosa.
Flora: Aqui está o nariz. Se acalma e presta mais atenção. Sempre igual, você… no mundo da lua.
Maive: Haha, e você sempre toda organizada e mandona. Lembra quando eu pegava sua lapiseira pra escola porque perdi a minha?
Flora: Claro! Eu queria te matar!
Maive: E dos lanches no recreio?
Flora: Você esbanjava o dinheiro todo.
Maive: Mentira! Você sempre chegava atrasada porque ficava jogando futebol com suas amigas. Quando chegava, já não tinha mais nada — nem dinheiro, nem pipoca doce.
Flora: Para de falar e vamos. Amarra o cadarço.
Maive: E se a gente fizesse bolhas?
Flora: Daqui a pouco, quando chegarmos na praça. Agora, vamos terminar isso.
Maive: Ok.
Flora: Temos que abrir e confirmar os nomes dos nossos pais. É o que precisamos pra escrever a carta e enterrá-la.
Maive: E o que acontece depois?
Ernesto: Nos libertamos. E libertamos nossos ancestrais.
Maive: Quem?
Flora: Sei lá, explicaram tanto que nem entendi. Disseram só pra confiar. Vamos, o que temos a perder?
Maive: Tempo, Flora. Tempo. A gente devia estar trabalhando. O show na praça de Almagro é em uma hora, temos que pegar o material em casa.
Flora: Então quanto mais rápido melhor. Vai, tenta quebrar o cadeado.
Maive: Eu? E você? Tá com medo?
Flora: Minhas mãos são maiores.
Maive: E o que isso tem a ver? É a ferramenta que quebra o cadeado, não a mão. Me dá aqui.
Flora: Toma, cuidado com a ponta.
Maive: Pronto.
Flora: (folheando papéis) Aqui diz!
Maive: Mostra, mostra! Diz o quê?
Flora: Você é burra ou finge?
Maive: Ei, sem ofensas! Com essa energia o ritual não vai funcionar…
Flora: Está pronta?
Maive: Sim.
Flora: Fechamos os olhos, respiramos fundo…
Maive: Espera! O que estamos fazendo?
Flora: Vai interromper tudo? Sei lá, estou seguindo o que disseram. Confia.
Maive: Ok, vamos.
Flora: Olhos fechados. Respiração pausada…
Maive: Ficamos confortáveis…
Flora: Sentimos o ambiente, ficamos presentes…
Maive: Anda logo, vamos chegar atrasadas!
Flora: Ai, cacete! Assim não dá.
Maive: Ok.
Flora: Agora pegamos caneta e papel e escrevemos o que dói.
Maive: Tristeza. Não sei quem são Florencia e Carlos.
Flora: Raiva por nunca olhar nos olhos deles.
Maive: Incerteza diante de tanta mentira.
Flora: Dúvidas diante de tanta dor.
Maive: Gratidão aos pais que estiveram presentes.
Flora: Foram bons. Nos ensinaram a amar a arte.
Maive: Nos colocaram no mundo do palhaço pra que pudéssemos sorrir, apesar de tudo.
Flora: Colocamos os narizes e somos felizes.
Maive: E fazemos rir.
Flora: Brincamos com crianças.
Maive: Inocência e amor.
Flora: Aquilo que um dia nos faltou…
Maive: Mas conseguimos construir.
Flora: Pronto! Largamos a caneta.
Maive: Ai, que susto! Precisa gritar?
Flora: Desculpa, estava conectada com a energia Chi…
Maive: O quê?! Para, Flora. Vamos logo!
Flora: Quando chegarmos na praça, antes do show, fazemos um buraquinho na terra e enterramos tudo.
Maive: Enterramos nossos mortos, que são também nossas memórias?
Flora: Não, as memórias não se enterram. São elas que nos permitem seguir em frente e saber quem somos. Os rituais com terra marcam o trânsito entre a vida e a morte. Ao longo dos séculos, os ritos funerários permitiram simbolizar a continuação da vida, o descanso da alma e canalizar a dor dos vivos. E pra encerrar, dizemos três vezes: “de maneira perfeita e em harmonia com o todo.
Maive: Ai, meu Deus, Flora! VAMOS!
Através da estrutura aparentemente caótica de um diálogo espontâneo, “Las Parsis” toca em feridas profundas. A infância quebrada, o riso como sobrevivência, a memória coletiva dos desaparecidos e a necessidade humana de saber quem se é. Na sua poética simplicidade e linguagem cotidiana, esta cena comove, incomoda e, acima de tudo, convida a não esquecer.
Quem somos quando não sabemos de onde viemos?
O que resta quando o passado é um silêncio imposto?
Talvez, como Flora e Maive, só nos reste fazer bolhas… e esperar que alguém as veja.
Na SOMOS, acreditamos na importância de dar voz a essas histórias. Este é um espaço global onde pessoas latinas ao redor do mundo se conectam, compartilham experiências e participam de conversas significativas. Porque a sua voz importa.
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